sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Café

Quando era criança, meus pais me levavam para passar as férias no interior do Rio Grande do Sul, em nossa fazenda, não era muito grande, mas suficientemente bonita para encher os olhos.
Aos fins de semana era aberta para visitação, as pessoas vinham de longe para tomar conosco, o café da manhã. As vezes sou capaz de sentir o cheiro do orvalho misturado com café e boa de milho. Infelizmente o cheiro do café, sempre me fora muito melhor do que o seu sabor...

Quem gerenciava, era nossa governanta a sra Raphaella Romagnoli., uma italiana de grandes olhos azuis e cabelos tão loiros que chegavam a ser brancos. Não era propriamente bonita, na verdade, se questionarem meus irmãos ou mesmo os visitantes que recebíamos, eles dirão apenas quer se tratava de uma velha senhora, mas eu, eu a via... "com os olhos da alma", os românticos diriam, mas eu apenas a via de verdade.

Dedicava algum tempo observando-a, o modo como sorria quando oferecia café, ou como balançava levemente a cabeça quando soltava os cabelos o mesmo o jeito como me chamava para as refeições.

"Andiamo guri, teu café está a esfriar!" e acariciava meus cabelos...

Cresci vendo a Sra Romagnoli cuidando de tudo e passei, em determinada época a ajudá-la com os afazeres, no ano em que completei 14 anos, meu pai achou valido meu interesse pela fazenda, e permitiu que eu trabalhasse nela nos finais de semana e em minhas férias, o que me aproximou muito da sra Romagnoli.
Passávamos os dias trabalhando e as tardes, na varanda, observando o por do sol, ela sempre tinha nas mãos uma caneca de café, que gentilmente me oferecia, mesmo sabendo que eu iria negar, reclamando do gosto.
Observávamos todas as mudanças de tom, até que do purpura tornava-se tão escuro que não podíamos mais distinguir sua cor.
Nesses momentos falamos de tudo, presente, passado e futuro, falávamos de coisas da vida, e ela sempre tinha uma bos história e um conselho melhor ainda. Como o que me deu quando completei 16.

"Bah guri, é simples, tu tiras o bode da sala e segue com tua vida!"

Sorri, fingindo entender...porém hoje, não deixo que bodes invadam a minha sala com facilidade.

No verão em que fiz 18 anos, a sra Romagnoli fora acometida por uma pneumonia muito severa, o que a impossibilitou de cumprir com suas tarefas, inclusive com nossas tardes, ela estava quase sempre acamada e apesar de não ser assim tão idosa, parecia muito frágil naquele mo mento, eu passava todo o meu tempo livre com ela, mesmo debilitada, desde que tivesse café, ela tinha uma história.

Certa tarde, antes de vê-la, ouvi meu pai dizendo que precisavam contactar a família dela, acho que a minha ingenuidade me impediu de entender, ou talvez eu não quisesse, ignorei todo o resto e me perguntei apenas porque Raphaella abriria mão de ter uma família para estar ali.
Levei essa duvida a ela, que sorriu docemente, sentando-se na cama.

" Meu guri, as vezes a vida não quer, me casei com menos idade do que tens hoje, e fiquei viúva com a tua idade, nunca quis outro, ele era o único... tu me lembras ele...tanto que chega a doer!"

Levantei-me no impulso, depois de ouvir o que ela me disse, e com o coração aos pulos, segurei-lhe a mão, ajoelhando-me e sua frente.

"Se quiseres, podes te casar comigo, de repente sou ele, que a vida te mandou de volta."

Vi uma lagrima se alojar no canto de seu olho.

" Como podes ser assim guri, tão especial, senta-te aqui, do meu lado. Tu és tudo o que qualquer mulher do mundo sonha, sorte terá aquela a quem levares ao altar, e eu, estarei contigo, acredita, ta bem?"

Ela beijou-me a face, e eu senti suas lagrimas molhares meu rosto.

Aquela noite permaneci em seu quarto até o momento em que ela pegou no sono, e na manhã seguinte acordei pelo alvoroço, desci as escadas apressado, na sala, minha família estava reunida, minha mãe veio ao meu encontro e me abraçou sem dizer uma palavra, e eu entendi... Raphaella havia partido.

Mais de 30 anos se passaram desde então, e sempre que a saudade aperta, pego uma xícara de café e fico observando o por do sol.
Não, eu ainda não gosto de café, pra mim, ele é como a saudade que eu sinto dela, amargo, mas se tomado no momento certo, é como se fizesse bem pra alma...