quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Suícidas

Sentada à mesa reconta novamente os comprimidos, enquanto mantém os olhos fixos na bula, para ter certeza de que a dose será a correta.
Empurra-os para as mãos, apanha com copo com água previamente preparado, e caminha pesadamente até o quarto onde se deita, coloca delicadamente o copo sobre o criado mudo e ajeita um envelope entre o telefone e o abajur.
Respira fundo, enche-se de coragem, leva a mão com os remédios até a boca, e sua ação é interrompida pelo barulho do telefone.
Pensou apenas em ignorar, mas o barulho tirava-lhe toda a concentração.
Podia desligar o aparelho, mas este era uma extensão, e o da sala permaneceria tocando.
E também se não atendesse, alguém poderia suspeitar de suas intenções, e ir resgatá-la no ultimo segundo, na verdade sabia que essa ultima hipótese era apenas uma ilusão.
Optou por atender ao telefone, seria bom ouvir uma voz conhecida antes de tudo.

-Alô - disse com a voz um tanto tremula.
-Alô - respondeu uma voz completamente desconhecida do outro lado.
Só faltava essa, telemarketing, pensou enraivecida.
-Olha não quero comprar nada não, ta bom querido.
-Mas eu não tô vendendo nada, não senhora.
-Também não tenho interesse de participar de nenhuma pesquisa.
-Não se trata de uma pesquisa!
-Então foi engano? Se foi, desliga logo, que eu tô ocupada!
-Na verdade...liguei para um número aleatório, precisava falar com alguém antes de tudo.
Um frio subiu-lhe a espinha.
-Antes de tudo o que, moço?
Por um instante o telefone ficou mudo, porém ela podia ouvir a respiração ofegante do sujeito.
-Moço? Moçô! Cê tá aí ainda? Antes do que?
-Eu vou me matar!
Disse ele de uma vez, como se não quisesse ouvir o som das própria palavras. Ela revirou os olhos, respirou pausadamente.
-Não brinca! Jura! É alguma pegadinha? Quem te mandou fazer essa palhaçada? Foi o otário do Pimpão,né?
-Pimpão?
-É o Pimpão!
-Não senhora, não sei de quem a senhora ta falando não, acho que não tenho nenhum conhecido com um apelido tão idiota...o que eu disse é sério, estou prestes a me jogar da sacada, e só queria falar com alguém antes de morrer. Só não queria alguém conhecido, que quisesse vir aqui me salvar, só quero morrer sabe?
-Ô se sei...eu...eu...eu também estou me preparando pra isso!
-Pra me salvar?
-Não, pra morrer!
-Você tá doente?
-Não, vou me matar!
-Ah, fala sério! Agora é você quem está de brincadeira, é feio zuar um futuro morto!
-Mas é verdade, tô aqui com os comprimidos e já tava colocando na boca quando você ligou!
-Você sabe que quem quer se matar não toma remédio, né?
-Nem pula da sacada!
-Minhas chances de morrer são maiores que as suas...
-Não se eu for encontrada muito tempo depois, tipo, uns três dias.
-Nossa, ninguém te visita não?
-Não! Ei, o que você tem com isso?
-Eu, nada! Só é triste...
-Se minha vida não fosse triste eu não iria querer morrer, né?
-Então me conta, o que exatamente te levou a esse extremo?
-Você é psicologo? Por que quer saber da minha vida?
-Sou não! Só achei que se eu visse uma vida mais miserável que a minha, teria um motivo pra viver.
-Não existe nenhum motivo que te prenda a vida?
-Nenhum! Tudo o que eu penso, me leva a querer morrer ainda mais rápido, frequentemente me pergunto: Por que não morrer? E nada me ocorre. Vejo o mundo indo ladeira à baixo, a humanidade, uma instituição falida! Não gosto dos meus parentes, amigos, só tive de ocasião, hoje nem sei por onde andam, amores, não nasci pra ser amado, não existe ninguém no mundo pra mim. Estudei a vida toda, pra nem conseguir exercer a minha profissão, e mesmo assim, fui mandado embora ontem, e do jeito que o mercado de trabalho anda, não vou conseguir outro tão cedo! Minhas contas vão atrasar, vou ser despejado, vou ter que morar na rua, comer lixo, e em algum momento um riquinho vai jogar gasolina em mim e tocar fogo, então, antes que isso aconteça, prefiro eu terminar com a minha vida, do meu jeito!
-Você é meio extremista, né?
-Olha quem fala, você quer se matar!
-Só que eu, não vou me matar pelo e se...vou me matar por algo de verdade, algo que já me mata há algum tempo.
-Hmmm, doença terminal...o que você tem?
-Não, não tenho nada, não me refiro a uma doença!
-Então você apanha do seu marido e antes que ele te mate você vai fazer esse favor a ele?
-Para de deduzir, deixa eu falar! Nem casada eu sou...
-Então é por isso, se fosse casada ia ter com o que se ocupar.
-Quer ou não ouvir?
-Desculpa, fala!
-Meu namorado me trocou por outro.
um silencio, depois uma risada
-Outro? Diz que seu ex não é o tal Pimpão!
-É sim!
-Só você não sabia que ele é gay, né? Ah...isso você supera, aquela cantora passou pela mesma coisa e em vez de se matar, ficou rica e famosa.
-Mas ela tinha talento, eu não tenho nada!
-Eu entendo, chega uma hora que a gente cansa de não ser ninguém, de olhar na multidão e ser só um rosto, igual a todos os outros, e não ter nada, nadinha que te faça especial... As vezes eu queria que alguém me visse de um modo que ninguém mais vê, não precisava ser importante para o mundo todo, bastava ser para alguém, um único alguém...Um pai, um filho, um amigo, um amor. Sabe, não queria confete, nem mesmo ser notado em meio a multidão, não almejo fama, fortuna, nada disso, só queria...só queria, chegar em casa ao fim do dia e receber um sorriso amigo, ter com quem conversar, dizer o que vi de belo e novo, ou resmungar sobre um dia chato...
-Solidão mata mais que a morte.
-Por isso vou dar fim à isso! Obrigado por ter me ouvido, agora chegou a hora de dizer adeus, foi um prazer  te conhecer, pena que tenha sido nessas circunstancias, tenho certeza que seriamos muito amigos, talvez...fossemos até menos solitários, né?
-É, talvez fossemos mesmo, talvez nossa vida fosse outra e nessa noite estaríamos...felizes.
-Bem...te vejo do outro lado, já que os suicidas vão para o mesmo lugar.
-Até!
Barulho de telefone desligando, pensou que a vida era injusta, por que não conhecera esse sujeito uns dias antes, umas horas apenas, gostara tanto de conversar com ele, e talvez nesse instante ele já estivesse morto. A história de sua vida, nunca ganhara absolutamente nada,perdeu tudo que lhe era caro, os pais num acidente na véspera de natal, cresceu sendo empurrada de parente em parente, até que decidiu viver sozinha, jamais criara laços, por medo de rompê-los. Nunca viu uma mão estendida em sua direção, sempre sozinha,vida assim nem merece ser vivida.
Colocou os remédios na boca e os engoliu com ajuda da água, apagou a luz e deitou, esperando ser levada ao sono eterno.
Outra vez o telefone toca, ela já não tem mais os mesmos reflexos e sente seu corpo amolecendo, ela atende, sua voz está fraca, quase como um sussurro.
-Oi
-Diz que você ainda não tomou os remédio?
-Você ta vivo? Achei que a essa hora já era pizza de asfalto.
-Eu cheguei a subir na mureta, daí pensei, qual a provabilidade de um sujeito que está prestes a se matar, ligar para uma garota que também está prestes a se matar? Destino! Temos algo juntos e quero descobrir o que é!
-Agora é tarde querido, os remédio já estão cumprindo com seu papel, e em breve estarei dormindo pra sempre.
-Não! Não pode! Nunca me senti a vontade assim com ninguém, e não é agora que eu te encontrei que vou te deixar partir, diz onde você está que mando um resgate.
-Mas...e se não der certo?
-Uma moça me disse pra não fazer nada baseado em "e se".
Do outro lado ela sorriu, e sentiu as lagrimas quentes rolando por seu rosto frio.
- rua dos laranjais, 312, bloco 6 apartamento 615. Só não fica triste se não der tempo, pois se assim for...é porque não ia dar certo tá?
-Vai dar!
Mais uma vez o telefone desligado, dessa vez ela não tinha forças nem para colocar o fone no móvel ao seu lado, deixou o cair. Sentiu seus olhos pesarem, sentiu seu corpo tombando, fechou os olhos, os pensamentos cessaram, era o fim!

Porém...nem sempre o fim ou a morte são como pensamos, as vezes é necessário finalizar uma etapa para começar outra, morrer de vez em quando para renascer mais forte.

Barulho de passos, sentiu um vento frio tocando-lhe o rosto, aos poucos foi abrindo os olhos, a claridade lhe incomodava, mas não conseguia mover o braço para tapar os olhos, foi acostumando-se a luz, até que um vulto tapou-lhe a visão do sol, piscou algumas vezes buscando o foco, e viu um rosto completamente desconhecido, seria ele o médico, pensou.

-Bem vinda bela adormecida!
Aquela voz, sim, conhecia aquela voz.
-Então é você!
Ele sorriu, e passou delicadamente os dedos por ser cabelos.
-Te disse que quem quer se matar não toma remédio!
Ela riu.
-Obrigada. E sabe...agora você realmente é único para alguém.
Os olhos dele encheram-se de lagrimas.
E ela percebeu que a partir daquele momento nunca mais estaria sozinha.

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